Há homens que se medem pela altura, outros pela fortuna, outros ainda pelas obras que deixam no mundo. Gallileo media-se pelos livros que lia. Não pela estante, que era modesta, mas pelo mapa íntimo que cada volume traçava na sua mente.
Tudo começou em 1986, com A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga. Gallileo era então um menino de olhos arregalados, que descobria no papel um refúgio e um reino. Os livros da infância foram chegando como mensageiros inocentes: O Menino Maluquinho, Reinações de Narizinho, Chapeuzinho Amarelo. Eram portas de entrada para um pacto secreto que faria com a literatura para o resto da vida.
Os anos 90 chegaram com a descoberta do mistério em O Escaravelho do Diabo e a aventura épica em A Ilha Misteriosa. Mas foi com Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, que Gallileo percebeu que os livros não eram apenas histórias: eram labirintos de significado, e ele queria perder-se neles. Aos dezessete anos, as distopias de Orwell e Bradbury acederam-lhe um fogo cívico, enquanto o diário de Anne Frank lhe ensinava que a literatura podia ser um grito contra a barbárie.
A viragem aconteceu na faculdade. O rapaz que devorava Sidney Sheldon e Paulo Coelho deparou-se com Curso de Linguística Geral de Saussure. Foi como trocar um riacho sereno por um oceano. Benveniste, Bakhtine, Jakobson – nomes que soavam a feitiços – revelaram-lhe a arquitetura invisível da linguagem. Os Irmãos Karamazov consumiram-lhe cinco meses de leitura lenta, dolorosa e transformadora. Já não lia por prazer; lia por necessidade, como quem respira.
Aos trinta anos, Gallileo era um leitor formado, mas a sua sede era insaciável. Mergulhou em O Príncipe de Maquiavel, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil de Locke, na Riqueza das Nações de Adam Smith. A sua lista de 2015 é um testemunho dessa ambição: Plutarco, Santo Agostinho, Montaigne, Shakespeare, Marx, Tocqueville. Um homem sozinho, na sua sala, a dialogar com os gigantes do pensamento ocidental.
Nos últimos anos, o cânone deu lugar a uma curiosidade mais vasta e generosa. Chimamanda Adichie sentou-se à sua mesa, assim como Lina Meruane e Jeferson Tenório. A sua biblioteca tornou-se verdadeiramente global.
Hoje, aos 39 anos de leitura ininterrupta, Gallileo olha para trás. Vê números, vê médias e pilhas. Mas os números pouco lhe importam.
O que importa é o fio invisível que liga A Bolsa Amarela a Um Defeito de Cor, o menino que era ao homem que é. A sua vida não está apenas na biografia que poderia escrever; está nesta outra, feita de papel e tinta, na biblioteca viva que construiu volume a volume, ano a ano. E percebe, finalmente, que não foi ele que leu os livros: foram os livros que o leram a ele, página a página, até o tornarem na pessoa que se senta hoje, de novo, a abrir um livro – Breve História da União Soviética – porque a viagem, Gallileo sabe, nunca termina.