quinta-feira, 21 de maio de 2020

Azeitonas Gregas - Gilberto de Mello Kujawski

Esse texto foi extraído do Jornal da Tarde - 4 de janeiro de 1980, sexta-feira, – OESP


Ainda há poucos dias, São Paulo Pergunta, nesta mesma página, trouxe os últimos lances da escaramuça travada em torno da Quarta Dimensão. Leitores descrentes classificam  Geometria de Quatro Dimensões como "baboseira absurda". Outro leitor assim se manifesta: "... O professor falou tanto sobre propriedades do espaço, que não existe que parecíamos estar num outro mundo. Para que serve esta geometria de quatro dimensões se estamos num espaço de três dimensões? Como esta Geometria pode minorar a fome da população ou lá que utilidade terá?" (JT, 17-12-79).

Sempre a mesma coisa. Desde que a Ciência existe não pode o sábio debruçar-se sobre a teoria pura sem que venha rondá-lo o espírito do pesadume e do obscurantismo perguntando: Para que serve? - qual a finalidade prática? - que utilidade tem?

Conhecerá o leitor dessa carta a história de um grego do século VI, chamado Tales? Esse Tales, que as histórias da Filosofia consideram o primeiro filósofo, vivia em Mileto, cidade da Ásia Menor, e, embora não fosse homem nada ocioso, sua ocupação preferida era observar as estrelas e tudo o que se passava no céu. Um dia estava tão absorto em suas observações, olhando atentamente para  o ar enquanto caminhava, que caiu dentro de um poço. Uma criadinha trácia que assistia à cena, depois de rir perdidamente do pobre astrônomo, ainda deu à liberdade de dizer-lhe que ele tanto se entusiasmava em saber o que acontecia no céu que não percebia o que estava aos seus pés! Como Tales vivia pobremente, muitos apontavam a inutilidade de Filosofia como causa de sua pobreza. Pretendendo calar a boca dos críticos, Tales  servindo-se de observações  astronômicas que só ele conhecia, previu  com bastante  antecedência uma abundante colheita de azeitonas. Arranjando pequena soma de dinheiro, arrumou quantas moendas havia na região, apreço ínfimo. Confirmando-se o acerto de sua previsão, a colheita  de azeitonas foi assombrosa naquele ano, produzindo, em conseqüência, demanda maciça de moendas, que Tales sublocou  impondo o preço, amealhando, assim, verdadeira fortuna. O filósofo riu das pessoas "práticas" que não entendem a ação fecundante das idéias  na economia da VIDA humana.


Qual a moral da história de Tales, um dos Sete Sábios da Grécia? Parece consistir em dois pontos:


1) Teoria é teoria, isto é,  a teoria não se subordina aos fins da prática, é o fim em si mesma. O objetivo  de Tales era observar estrelas, e com isso contentava, sem pedir mais nada, prova é que renunciou à riqueza, ao conforto, ao prestígio, para dedicar-se, exclusivamente à contemplação da natureza.


2)  A teoria, sem deixar de ser teoria pura, pode desdobrar-se em instrumento da prática. Contam-se de Tales muitas proezas, além da que já sabemos. Mediu a altura das pirâmides egípcias pela sombra, explicou o mecanismo das inundações do Nilo, conseguiu desviar o curso de um rio, durante a guerra, e aconselhou sagazmente às cidades gregas que se unissem numa federação para resistirem ao crescente poderio persa.

Não foi, propriamente, um desligado. "Neste antigo pensador e investigador helênico, vemos atuar a característica união de energia teorética e energia prática sempre presente na sabedoria grega." (W. Nestle)


Teoria significa "visão", visão mental, e é indispensável na vida humana sempre que se depara com o desconhecido, o incerto, o perigoso. Como a vista  vai sempre na frente dos pés, devassando o caminho à teoria é o capitão - dizia Leonardo da Vinci - e a prática são os soldados. “E não é de uso exclusivo dos sábios. Que significa a linguagem, senão a mais difundida das teorias, a teoria ao nível  da vida cotidiana, ao alcance  do homem comum? Verdade é que teoria congelada, e por vezes fossilizada nos padrões  e esquemas da palavra, mas ainda assim atuante na interpretação do mundo.


A teoria pode ser comparada a um óculo de grande alcance, devassando à nossa vista novas terras desconhecidas. Os olhos do contemplador se contentam com a vista a distância, mas nada impede que um dia suas pernas se movam em direção aos novos horizontes, apenas entre vistos. A teoria pode ser comparada também a um jogo de armar passível de todo tipo de  combinações e figuras desde as mais fantásticas, a abstratas e irreais até as mais empíricas e prosaicas. Na teoria a inteligência é elevada ao mais alta grau de liberdade. Por isso, onde  não viceja a liberdade, a teoria não pisa. Totalitarismo, autoritarismo, despotismo sufocam juntos a liberdade e sua irmã gêmea, a teoria, o espírito de indagação e especulação. O camarada Marx parecia não estar em seus melhores dias quando, irritado com o descabelamentos do idealismo alemão em seu tempo, traçou aquelas linhas que tanto dariam que falar: "Os filósofos não têm feito mais que interpretar  o mundo de diversas maneiras: agora, trata-se de transformá-lo." (tese sobre Feuerbach). Ora, a filosofia não tem feito outra coisa senão transformar o mundo, desde os primeiros vagidos. Pois qual a metafísica que não arrasta consigo a respectiva ética, certa política, determinada ciência e técnica? Perguntou um amigo muito afeito a essas questões: - Quem transformou mais o mundo até hoje, Marx ou Descartes? Como se vê, o páreo não é fácil.


Condensou-se no Brasil, terra querida do obscurantismo, a mentalidade pragmática a mais imediatista, das línguas clássicas, do espírito de pesquisa. Ainda há pouco, um ex-presidente da República, que não parece descender daquele "povo de poetas e filósofos", recomendava à juventude que não se dedicasse ao estudo das disciplinas sem mercado, como se cultura fosse questão de mercado. Nada mais distante da realidade que o cálculo infinitesimal, mas de foi que surgiu a física do automóvel e do avião. Do cálculo infinitesimal, das geometrias não euclidianas, da teoria da relatividade e outras superfluidades derivou a física superiormente exata que construiu nosso mundo e agora ameaça destruí-los, comprovando até que ponto aquelas teorias científicas, aparentemente extravagantes, nada tem de inoperantes.

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