quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

CENA CARIOCA

LEIA ATENTAMENTE:

Carlos Drummond de Andrade

Quando a senhora foi descer do lotação, o motorista coçou a cabeça:
-Mil cruzeiros? Como é que a senhora quer que eu troque mil cruzeiros?
-Desculpe, me esqueci completamente de trazer trocado.
-Não posso não, a madame não leu o aviso - olha ele ali - que o troco máximo é de 200 cruzeiros?
-Eu sei, mas que é que hei de fazer agora? O senhor nunca esqueceu nada na vida?
-Quem sabe se procurando de novo na bolsa...
-Já procurei
-Procura outra vez.
Ela vasculhava, remexia, nada. Nenhum cavalheiro (como se dizia no tempo de meu pai) se moveu para salvar a situação, oferecendo troco ou se protificando a pagar a passagem. Àquela hora, não havia cavalheiros, pelo menos no lotação.
-Então o senhor me dá licença de saltar e ficar devendo.
-Péra aí. Vou ver se posso trocar.
Podia. Tirou do bolso de trás um bolo respeitável e foi botando as cédulas sobre o joelho, meticulosamente.
-Tá aqui o seu troco. De outra vez a madame já sabe, heim?
Ela desceu, o carro já habia começado a chispar, como é destino dos lotações, quando de repente o motorista freou e botou as mãos a cabeça:
-A Abobrinha! Ela ficou com a abobrinha!
Voltando-se para os passageiros:
-Os senhores acreditam que em vez de guardar a nota de mil, eu de burro, devolvi com o troco?
Botou a cabeça fora do carro, à procura da senhora, que atravessava a rua, lá atrás:
-Dona! Ô dona! A nota de mil cruzeiros!
Ela não escutava. Ele fazia sinais, pedia aos transeuntes que a chamassem, o trânsito entupigaitava-se, buzinas soavam:
-Toca! Toca!
Os passageiros não pareciam interessados no prejuízo, como antes não se condoeram do vexame da senhora.
-Como é que eu posso tocar se perdi mil cruzeiros, gente? Quem vai me pagar esses mil cruzeiros?
Encostou o veículo, e, num gesto solene:
-Vou buscar meu cabral. A partir deste momento, confio este carro, com todos seus pertences, à distinção dos senhores passageiros.
-Deixa que eu vou - disse um deles, um garoto. E precipitou-se para fora, antes do motorista.
-Será que esse tiquinho de gente consegue?
Via-se o garoto correndo para alcançar a senhora, tocando-a pelo braço, os dois confabulando. Ela abria de novo a bolsa, tirava objetos, o pequeno ajudava. Enquanto isso, o motorista queixava-se.
-Esta linha é de morte. Primeiro querem que a gente troque um conto de réis, como se o papai fosse o Tesouro Nacional ou Banco do Brasil. Depois carregam o troco e o dinheiro trocado, que nem juros. Essa não! E esse garoto que não acaba com a conversa mole, sei lá até se ele volta.
Os passageiros impacientavam-se com a demora da expedição. O guarda veio estranhar o estacionamento e recebeu a explicação de força-maior, quem é que me paga meus mil cruzeiros? O Serviço de Trânsito?
O garoto volotu sem a nota. A senhora tinha apenas 982 cruzeiros, ele vira e jurava por ela.
-Toca! Toca!
-Tão vendo? Um prejuízo desses antes do almoço é de tirar a fome e a vontade de comer.
Disse em tom frio, sem revolta, como simples remate.
E tocou. Perto do colégio, o garoto desceu, repetindo, encabulado:
-Pode acreditar, ela não tinha mesmo o dinheiro não.
O motorista respondeu-lhe baixinho:
-Eu sei. Já vi que está ali debaixo da caixa de fósforos.
Mas se eu disser isso, esse povo me mata.


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